IA ‘ressuscita’ mortos e ética é debatida

A inteligência artificial (IA) tem avançado a passos largos, expandindo suas capacidades para além do que se imaginava possível há alguns anos. Uma das áreas que tem gerado grande interesse e, ao mesmo tempo, preocupação, é a recriação digital de pessoas falecidas. Empresas e centros de pesquisa estão desenvolvendo tecnologias de IA que simulam a presença de indivíduos que já morreram, permitindo interações digitais que variam de chats de texto a videochamadas. Essa inovação levanta questões complexas sobre luto, memória e a própria definição de morte na era digital.
O que é a ‘ressurreição digital’?
A chamada ‘ressurreição digital’ envolve a recriação de aspectos de pessoas falecidas usando tecnologias avançadas. Essa prática, embora possa oferecer um consolo momentâneo, abre um profundo debate sobre suas implicações éticas, filosóficas e legais. Empresas como a You, Only Virtual, Super Brain e Project December conseguem reviver digitalmente entes queridos que morreram com um punhado de fotos e pouco mais de 30 segundos de dados audiovisuais. As recriações podem ser assustadoramente convincentes.
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Como funciona?
As IAs que ‘ressuscitam’ os mortos são alimentadas com dados como mensagens, e-mails, vídeos e gravações de voz, utilizando essas informações para gerar respostas que imitam a personalidade e o estilo de comunicação do falecido. Quanto mais dados são incorporados na IA sobre a vida de uma pessoa, com fotos, vídeos, gravações de áudio e textos, com mais precisão o ‘clone’ vai imitar a pessoa, independente se ela está viva ou morta.
Existem diferentes abordagens para criar essas versões digitais:
- Chatbots: São criados chatbots baseados na pegada digital deixada pelo falecido por meio de mídias sociais, e-mails, mensagens de texto e sistemas de mensagens, com o objetivo de dar aos enlutados a chance de falar com seus entes queridos após sua morte.
- Avatares interativos: Empresas desenvolvem avatares de vídeo interativos, criando representações visuais que simulam conversas face a face com os mortos.
- Deepfakes: A tecnologia deepfake é usada para criar vídeos realistas usando a imagem, voz e movimentos de pessoas que, na verdade, não participaram da filmagem.
Implicações éticas e riscos
Apesar do potencial de oferecer conforto e preservar memórias, a ‘ressurreição digital’ levanta uma série de questões éticas e riscos:
- Consentimento: O falecido concordou com isso antes de morrer? Sua família e amigos aprovam?
- Privacidade: A criação de uma vida digital após a morte e a comercialização dos dados do falecido levantam questões relacionadas à privacidade, gestão de dados e identidade.
- Saúde mental: Especialistas expressam preocupações sobre os efeitos psicológicos dessas tecnologias. A interação constante com avatares digitais pode dificultar a aceitação da perda, especialmente em fases mais sensíveis do luto. Os robôs-fantasma de IA podem traumatizar ainda mais uma pessoa que esteja vivendo um luto complicado, e exacerbar os problemas associados, como as alucinações.
- Autenticidade: A IA pode fazer com que esses entes queridos digam ou façam coisas que nunca disseram ou fizeram em vida, levantando preocupações éticas e questões sobre se isso ajuda ou dificulta o processo de luto.
- Manipulação: Há o risco de que essas recriações sejam usadas para promover causas legais, políticas e educacionais, manipulando a imagem do falecido para defender certos interesses.
O luto na era digital
As ferramentas tecnológicas de luto tentam se firmar como normais, mesmo quando geram mudanças profundas – e perturbadoras – no modo como processamos e aprendemos a lidar com a perda. A possibilidade de manter um contato digital com entes queridos falecidos pode parecer reconfortante. Pessoas enlutadas relatam que interagir com uma versão digital do ente amado oferece alívio, preenchendo parte do vazio deixado pela perda. A tecnologia também pode auxiliar na preservação de histórias e memórias familiares, permitindo o registro de entrevistas e informações valiosas para futuras gerações.
No entanto, psicólogos alertam que essa prática pode atrapalhar o processo do luto. Os chamados ‘deathbots’ provavelmente não proporcionarão conforto substancial e podem ser prejudiciais para a saúde mental das pessoas que passam pelo luto.
Regulamentação
A legislação atual não aborda especificamente a criação de avatares póstumos. Enquanto obras intelectuais são protegidas por direitos autorais, vozes, fotos e vídeos não recebem a mesma proteção legal após a morte. Há uma necessidade de diretrizes internacionais e harmonizadas para assegurar a ética no desenvolvimento e uso da IA. A regulação ética da IA exige esforços coordenados entre governos, setor privado e sociedade civil, bem como a promoção de abordagens interdisciplinares para equilibrar inovação e responsabilidade.
O futuro da ‘ressurreição digital’
Apesar das preocupações éticas e dos riscos potenciais, a tendência de recriar digitalmente os mortos parece ser inevitável. Um artigo acadêmico de 2024 já analisa o fenômeno como inevitável, prevendo a popularização de agentes de IA para interagir com entes queridos após a morte, levantando debates sobre identidade, consciência e o significado da morte na era digital.
O futuro da ‘ressurreição digital’ dependerá de como a sociedade irá equilibrar os benefícios potenciais da tecnologia com os riscos éticos e psicológicos. É crucial que haja um debate aberto e transparente sobre essas questões, envolvendo especialistas de diversas áreas, para que possamos garantir que a IA seja usada de forma responsável e ética na forma como lidamos com a morte e o luto.
